quinta-feira, 30 de abril de 2009

29 de abril


Tenho três filhos brancos e uma neguinha: Maíra. Concebida em Sumpaulo, quem lhe sugeriu o nome foi Darcy Ribeiro, da prateleira da biblioteca de meus primos Lucinha e Zé Miguel. Nasceu pequititita, cresceu calorenta e invocada. Dormia nos batentes de mármore das portas, nas baixas temperaturas de Maracás, sua cidade primeira. Cresceu me dando testa. Foi a unica a tomar uma palmada, que me dói até os dias de hoje. Quando tinha febre, batia 40 e não baixava a não ser quando ela queria. Foi a primeira dos filhos a botar cigarro nos beiços, a tomar umas biritas, a viajar sozinha. Jogava capoeira de Angola. Cada dia mais parecida com a mãe, como num espelho, mas por fora, o pai. Hippie, riponga, fez vários vestibulares, passou em todos, foi pra Biologia.
-"Vivo pobre mas não me dobro"!
Retada! Virada no estopô! Não passou do metro e meio; de ousadia! Nariz pra cima, nunca leva desafora sem resposta do mesmo tamanho. Quando alguem lhe desafia e põe a mãe no meio, roda a baiana e diz:
-"Eu sou neguinha!".
Um dia me disse que estava grávida: virou Mãe de Iara. O resto, vocês já sabem.
foto de maira de eduardo.

terça-feira, 28 de abril de 2009

A lenda em fotos

finalmente aconteceu o inevitável encontro de Iara com as águas; as doces águas do rio das almas foram escolhidas para recebê-la em batismo. não se deteve frente às corredeiras. olhou extasiada como se reconhecesse sua morada. molhou o pé, as mãos, levou gotas à cabeça. ria e apontava, espichava o poscoço tentando ver até onde ia. recolheu um graveto que boiava e usou de cajado. trouxe para casa, no lugar do rio.


a mãe: "estas são as águas de que falo. há perigo nas suas profundezas. seu redemoinho desorienta, as pedras escorregam. cuidado. não quero que se machuque. fique aqui, é cedo ainda pra você ir nas águas. aqui é o seu lugar mas tudo tem seu tempo. use seu cajadinho, futuque, pesquise, veja onde pisar".


o avô: "estas são as águas de que falo. não há lugar mais bonito. aqui, nesta curva, debaixo desta pedra, a loca: ali mora a mãe dágua. o redemoinho leva à sua porta. vê a espuma? as bordas de sua roupa. aprenda a nadar logo. se deixe levar pela correnteza. toque levemente as pedras do fundo, deixe a direção mudar. mergulhe, mergulhe, mergulhe...desta água pode beber. suba pra respirar e volte a mergulhar. bata as mãos na água, ela é dura, é mole. jogue áqua pra cima e deixe cair no rosto. aqui é o seu lugar. vá no fundo, mas nunca esqueça conselhos de mãe".

fotos de maira e bernardo, na fazenda tapiranga. 26.04.09

quinta-feira, 23 de abril de 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

e-mail de e-amigo

e-mail enviado pelo alterego brasileño de Juan Trasmonte:

Caro Bernardão,
Te mandei um e-mail ontem, não sei se vc recebeu.Espero que a Jú tenha voltado com tudo em cima. É o seguinte; lendo a tua postagem sobre Luana, fiquei fixado com esta frase: "mas podia ser pior se morasse na Lituânia por exemplo".Na hora tive vontade de escrever algo sobre isso. Imaginei esse teu lado pai, que vê a filha realizada, mãe, mulher, profissional, mas que guarda num cantinho do coração aquela vidinha que viu nascer.Aí saiu essa brincadeira que te mando, meio assim, "a palo seco", como dizia o João Cabral, sem corregir.


LUANA NÃO VAI PRA LITUÂNIA

Luana não vai pra Lituânia
Luana não vai pra Luanda
não moro no morro
mas vivo tão perto
tão quase não morro
Luana não vai pra Lituânia
Luana não vai pra Luanda
eu lembro dos dias
do doutor Bonfim
senhor do Bonfim
a trazer teus dias
que não há doutor
sem haver senhor
Luana que chora, que berra
que brinca, que anda
Luana que vai pra quitanda
mas
Luana não vai pra Lituânia
Luana não vai pra Luanda
Lua
anda
mas não anda tanto assim
que já abri os braços
mas na Lua cheio
e na lua minguo
e a saudade é guerra
que já Ia
vem de Lua
lua lua
ia ia
Iansã guerreira
Lua filha
companheira.

João Detrasdomorro abr/09
Abração


foto de lua: eduardo ferraz, 11.04.09

terça-feira, 21 de abril de 2009

Valsalva-me Jesus!


Hoje tomei o lugar do outro. Fui ao médico por absoluta pressão da família. Explico: minha tontura não me abandonou nem um segundo sequer e mudou de estilo: ela agora aparece quando faço qualquer esforço com aumento da pressão intratorácica: uma tosse, um espirro, nem pum me garante. Outro fato decisivo foi uma desorientação que sofri em Buenos Aires: fiquei quase uma hora perdido entre quatro ruas que já conhecia bem, como um portenho. Pirei.

Vim pra Bahia me consultar. Procurei um neurologista por conta da desorientação. Um menino me atendeu e gostei dele de cara: Dr. Luis Soeiro. Atencioso, firme, me tranquilizou em parte, apesar de achar que os sintomas tem fundo neurológico, sim. Manobra de Valsalva*, me lembrou, a tontura que sobrevem ao esforço. Não claudico quando deambulo, mas não posso soltar um pum sem cair, é uma tristeza.

Me medicou pra tontice, recomendou outra viagem ( pode até ser Buenos Aires, ele próprio recém chegado de lá) e solicitou uma Ressonância Magnética da cabeça. Farei. Ela pode identificar alguma alteração, um AVC transitório, um alemão se mudando pra lá. Felizmente não mostra minha alma, meu medo de morrer, meu desejo de ir à Paris em vez de Buenos Aires, minha vontade de soltar puns e mais puns sem ver o mundo rodando enlouquecido...
* soprar com a boca e o nariz tapados
foto de ressonancia magnética, sem autoria.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A tia da Plaza de Mayo


Fui conhecer a Plaza de Mayo. Não podia ir à Buenos Aires sem conhecê-la. É pequena, muito menor do que imaginava e do que a impressão que passava quando cheia de gente bradando por tanta coisa. Quase vi Evita acenar da sacada da Casa Rosada. Tem umas pessoas circulando por lá, com o olhar de quem procura vê-la. Nunca vi mortos tão vivos como os argentinos ( e agregados): Evita, Gardel, Guevara. Gardel, o francês, é argentiníssimo, e é quase um motivo de revolta dizer o contrário. É o Carmem Miranda deles. Hoje a Plaza só tem turistas e um monte de faixas lembrando que Las Malvinas son Argentinas. Nada de locas, nada de madres, nada de abuelas; aparecem em dias marcados. Só há faixas envelhecidas.
A Casa Rosada é pequena, também. Não sei se é, mas está feia. Tem uns fios e um monte de antenas no telhado que lhe conferem um ar de barraco. Barraco cor de rosa. O fundo é mais bonito, numa praça mais transada.
O Obelisco é pequeno. O famoso Obelisco é um mito, ou sofre do mito do tamanho.
Descobri, num city tour, que a afamada arrogância argentina vem do fato de que seus simbolos são na verdade, menores do que realmente são; depois, num Café da Avenida Córdoba, num papo com Juan Trasmonte, descobri que a arrogância argentina é que é na verdade um mito.

mena. foto de nana na plaza de mayo, 03 de abril de 09

terça-feira, 14 de abril de 2009

Oropa, França e Bahia


O que há em comum entre Lisboa, Roma, Buenos Aires, Havana e Nilo Peçanha? cadeiras na calçada. Só viajo pra onde tem cadeiras na calçada. E a diferença entre elas? em Nilo, não pago o café. Se tem uma coisa na vida que gosto, é sentar numa cadeira e ver a vida passar na minha frente. Pode rolar um artista tocando sax, alguem oferecendo flores, querendo fazer sua caricatura ou as pessoas comuns simplesmenete passando, como se estivessem desfilando pra mim. Gosto especialmente de observar os sapatos e ficar imaginando porque aquela pessoa escolheu exatamente aquele sapato naquele dia, se é seu unico par, por que aquele não combina com a roupa ou se é adequado para o clima. Quase nunca fecha com o que eu escolheria. Pelo sapato você saca muito do sujeito que o calça. Mostra-me o que calças e te direi quem és.

Voltemos às cadeiras nas calçadas. Mudam as cidades mas não se altera em mim o gosto de espiar. Sou um voyeur das ruas. Não me chamem, em viagens, às compras. Me recuso a ser protagonista nas cidades alheias. Me recusei a andar nas gôndolas cafonas com suas almofadinhas fedorentas de babados, cheias de japoneses fotógrafos ou mexicanos em lua de mel. Não vou a uma tourada, nem depois de morto. Ninguem me forçará a subir na Torre Eiffel ou no Empire States, aliás, morro sem ir aos USA & ABUSA. Com tudo isso, não me considero um mau companheiro de viagem, um chato; para uma viagem se tornar a dos sonhos, apenas me convide para um café.
foto de nana, num café da florida com cordoba, b.a. , argentina, 04/04/09

sábado, 11 de abril de 2009

Luana



11 de abril de 1979. Às sete horas da noite toca o telefone no consultório. Era Morena, então minha mulher:
-" Dr Bonfim mandou ir pro hospital. O nenem ( não havia ultra-sonografia) vai nascer daqui a uma hora".

Chovia e meu bugre, da altura dos pneus dos ônibus, abiu caminho da rua Ruy Barbosa ao Português em pouquíssimos minutos. Já encontrei o cenário armado. Às 8:20 nasceu uma menina, nome escolhido por causa da tataravó Loana, corrigido para Luana. Assisti ao parto e até hoje lembro de tudo. Foi a maior emoção que já senti em toda a minha vida. Pode parecer lugar comum, e é, pouco importa, afinal, ninguem jamais vai saber o que sentimos quando nos nasce um filho, a não ser os que tem filhos.

Lua cresceu, mais até do que eu gostaria, escolheu minha profissão como sua, casou e hoje mora no Morro de São Paulo. Vejo menos do que gostaria também, mas podia ser pior se morasse na Lituânia por exemplo.

Hoje completa 30 anos. Primeiro filho a passar esta barreira. Dá um tombo na gente dizer que tem filho com 30 anos mas prefiro assim. Que todos façam 30 pra eu ver ( faltam 12 anos pra se completar o desejo, pois que a caçula Nana tem 18).

Feliz aniversário minha filha. Minha Lua tão querida. "Lua do meu coração".

foto de eduardo ferraz

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O primeiro Tango em Buenos Aires


Por una cabeza
de un noble potrillo...

Ontem, saindo de Ituberá com destino à Bahia, ouvi na rua em alto volume uma música: arrocha! Não me conformo em ouvir merda. Perguntei ao coordenador de programação da nossa rádio local por que tanto arrocha e a resposta foi a mais óbvia: -é o que o povo gosta. E eu retruquei: -e vocês oferecem outras músicas? -Não, porque a gente "sabe" o que o povo quer.
Arrocha ainda não atravessou fronteiras do sul. Nos cinco dias que passei em Buenos Aires, tirando Ivete no Aeroporto avisando que levantou poeira, só ouvi música bonita em todo canto que andei. Principalmente tango.

Adoro tango. Aprendi a gostar com meu pai que se gabava de ter dançado muito na juventude, e curtia Gardel. Aprendi a ouvir Gardel e seus tangos pungentes, droláticos e macabros. Tinha mesmo a fantasia de ouvir tangos em B.A. E se ouve em todo canto. Dos lindíssimos de Piazzola ao meu preferido: Por una cabeza, de letra do brasileiro Alfredo Le Pera. Fui a um show de tangos. Confesso que meio arredio com esta história de show pra turistas, mas fui. E adorei. Mais uma vez, tirando os desnecessários cavalos empinando no palco no início do espetáculo, as piadinhas sobre Lula e a discutível idade das dançarinas, veio uma orquestra de tangos, com um maestro de 81 anos, lindo, cabelos alvíssimos, marcando com a mão trêmula: Por una cabeza, A media Luz, Mi Buenos Aires Querido e o repertório de Astor Piazzola. Ouvi tango no nascedouro; aprendi que o piano avisa que vai ser tango; o bandoneon marca o compasso inconfundível mas é o violino quem faz chorar. Tango tem de ser ouvido com vinho na mão, a amada ao lado e uma inesquecível tristeza, seja ela de que ordem for. Se dor de amor, melhor.

Deu uma vontade enorme de ouvir Dalva de Oliveira. Ou Elizete Cardoso.

foto de uma camiseta comprada por nana na rua de b.a.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sobre cada um


JUAN TRASMONTE


Sabem aquela foto do Juan do blogue NemvemQuenaotem? esqueçam. Juan nem de longe se parece com o da foto. O de verdade é tudo mais. Muito mais jovem do que aparenta, muito mais interessante, inteligente, bem informado e sensível do que deixa passar em seus escritos, fala um português corretíssimo com sotaque carioca - a unica bandeira é não saber pronunciar o "ão". Mas nenhum estrangeiro consegue. Ponto pra Juan.
Ligou pro hotel deixando seu numero. Liguei e foi logo festa. Marcamos café às cinco, por sugestão minha, no Grand Café, na Florida com Córdoba. Tem um saxofonista lá todo dia, Javier, já meu camaradinho, que atacava Manhã de Carnaval na chegada de minha pessoa. Chique no úrtimo! Na travessia da rua já nos avistamos, ele um pouco mais pontual que eu. Muito simpático, abraços de velhos amigos. Cada um contou sua vida desde pequenininho. Café, papo, um Marlboro atráse do outro, o portenho. Me estende um envelope com dois belíssimos regalos: um CD de tangos eletrônicos para mim e outro de música andina para Maria Sampaio, com dedicatória pra lá de carinhosa. Eu e Maria jamais ouviríamos nossos discos, roubados com minha mala. E eu nunca aprendo a ser educado, gentil e ter boas maneiras. Fui de mãos vazias, passei vexame.
Juan sabe tudo de música brasileira. De música. Trabalha em uma gravadora. Me encantou com seu conhecimento, posto com a simplicidade que só é permitida aos muito generosos. Foi generoso com minha ignorância. Não conheço música como o gringo.
Nos despedimos com outro abraço de e-amigos. Falamos do trem, de nossa falta. Juan promete nos visitar. Que seja breve, hermano. Fiz uma foto dele, perdida com o celular roubado. Mas é como o descrevo aqui, não o que está na foto do blogue.
No episódio do roubo, foi perfeito: prontificou-se de imediato a me ajudar, o que nem foi preciso. No ultimo telefonema pra me despedir, ao saber da perda dos CDs, disparou: mando outros por Juliana.
Este gringo é um porreta! Quase um brasileiro, João detrás do Morro
foto do blogue naovemquenaotem,de juan trasmonte

CHEGUEI !

Eu, Nana e Pierre Verger, em B.Aires


Aprendi com a prima a chamar odisséia de diocese. Apois, meu fim-de-viagem foi uma diocese!!! Só foi uma aporrinhaçãozinha pra ter mais assunto, além do que serviu mais uma vez pra provar da amizade dos e-amigos. Foi uma rede rápida de solidariedade que se instalou: Juan em B.A., Renata em S.P. e a renca de cá todinha se mobilizando pra encontrar Vera. Marcus até falou com minha sogra, arriscando a própria vida.


Assim se sucedeu: ao pagar as contas do Hotel, o motorista da van enviada pela companhia de turismo, prontificou-se a carregar as malas do salão até o carro. Ficou todo mundo olhando aliviado, afinal ninguem pegou peso e não é todo dia que se vê um argentino servindo a gente ( o que se provaria depois que los pampas é mais embaixo). No aeroporto corri pra ajudar a tirar as malas e dei por falta da minha, uma mochila pequena de carregar nas costas, cheinha de roupa suja e lembrancinhas para Iara, além do passaporte, meu celular poderoso com todas as fotos da viagem, inclusive com Juan, afinal. Necas! enquanto aturdidos, nos acusávamos pelo mole, o motorista saiu de fininho e escafedeu-se pampas arriba. Para siempre. O resto, vocês sabem. Fiquei sozinho correndo atrás da Embaixada que estava fechada, do Consulado que me atendeu muito bem, do policial que babava de ódio "ustedes brasileños tenen que vir con un interprete; non tengo obligación de hablar portugues!"ou alguma coisa assim. Mas tudo deu certo. Mais certo de tudo foi o apoio de Juan Trasmonte. Claro que o proximo post será o Sobre Cada Um dedicado a Juan. Vocês vão adorar Juan tanto quanto eu. Juan, o maior de todos os argentinos.
foto de vera

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Exilado

Proibido de entrar em meu pais. Escrevo do Eroporto de EZEIZA, as 16.56 h, num computador estrangeiro que n'ao conhece minha lingua. N'ao encontro a crase, muito menos o agudo. Se tudo fosse isso, no entanto. Voltando pra casa, sai do hotel com minha maletinha cheinha de cueca suja, 4 camisetas idem, umas lembrancinhas pra Iara. A mala nao chegou ao Aeroporto. O dono levou, deram a elza, furtaram, surrupiaram. Passaporte foi junto. Sim, passaporte porque nao disponho de Carteira de Identidade ha seculos! A noticia, no embarque,
- o senhor nao pode sair da Argentina, ate que consiga novo documento. Pesadelo dizerem que nao possso mais sair daqui...
Vera e Nana embarcaram e fiquei so. Queixa no consulado, na Policia, volto ao Consulado, documentozinho vagabundo na mao mas este valhe. Chego aqui no eroporto as 2 horas, sou recebido as 4 e 30, conseguiram -depois de muita briga, me colocar no voo das 21 e 25 h, sem conexao em Sao Paulo. Me dizem que perdi a ourtra perna da passagem e quando la chegar, vou ter de comprar outra. Paciencia. La vai ser outra briga, desta vez em portugues claro onde eu nem possa fazer o que fiz aqui: chamei todo mundo de cabrunco e eles nem se tocaram. Putanos. Ao menos estarei em casa, ao final de meu exilio de dez horas.

xeudizer:

anotações livres, leves, soltas